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A Declaração de Hamburgo mira no alvo errado

A Declaração de Hamburgo é um documento escrito por um grupo de jornais com objetivo de defender os direitos autorais na internet. Se parasse aqui, seria compreensível e sob certos pontos de vista, até louvável.

O problema começa quando o documento ataca algo a que denomina genericamente de “agregadores de conteúdo”, o que em tese se refere à serviços como o Google News, o Yahoo! News e o Mahalo.

O documento busca se legitimar defendendo que os agregadores seriam os responsáveis pela crise no jornalismo impresso em papel jornal, o que é no mínimo superficial. Ao contrário do Brasil, onde os jornais impressos apresentaram aumento de circulação nos últimos anos, apesar de eventualmente alegarem queda nas receitas, a situação no mundo tende a ser o contrário: queda de circulação e de receitas.

Sem estender muito a discussão neste ponto, a queda de circulação pode ser explicada por uma enorme variedade de fatores, entre eles a internet:

  • Com o barateamento das tecnologias de publicação (tanto as digitais quanto as impressas), tornou-se muito mais simples produzir um veículo de mídia (revista, jornal de bairro ou outras publicações impressas) e monetizar o negócio, de forma que o volume aumentou muito dos anos 90 até hoje, mas a qualidade ganhou mais graus de separação entre o péssimo, o razoável e o ótimo;
  • Excesso de informações à disposição de qualquer pessoa, em qualquer classe social, com conseqüências como a “Ansiedade de Informação” e o “Paradoxo da Escolha” – fica difícil selecionar o que ler em meio a tantas opções;
  • Aumento exponencial dos gastos em famílias de classe média, nas quais o orçamento é disponível, mas limitado (vale para o Brasil e para a classe média americana também). Anos atrás gastos como telefonia celular, TV à cabo e conexão à internet eram inexistentes. O dinheiro que hoje é utilizado nestas contas provavelmente migrou de outros lugares, entre eles a assinatura de jornais e revistas;
  • Enfim, a disponibilidade de acesso a jornais pela internet, o que – em tese – permitiria ler um jornal online. Este ponto é bastante controverso, uma vez que são poucos os jornais que publicam todo o material do impresso na internet e os que o fazem ainda não encontraram uma solução de navegação que gere uma boa experiência do usuário e permite ler online todo o jornal como se faz no papel. Aqui se abre outro imenso foco de debate:
    • qualidade da leitura na tela x papel
    • praticidade de manuseio do papel x interface
    • agrupamento do conteúdo online x no papel
    • capacidade de atualização do conteúdo ao longo do dia
  • Por fim, a questão do imediatismo. Ninguém compra o jornal do dia seguinte para saber que Michael Jackson morreu. O jornal deve assumir outro papel neste caso, o de agregar informações extras, reflexões e desmembramentos do fato jornalístico. Sobre este aspecto, vale a pena ver a entrevista que o Celso Freitas concedeu ao Vitrine da TV Cultura abordando o futuro do jornalismo. Se não fizer isso de forma bem feita, muitos blogs e sites o farão. Caberá ao leitor decidir pagar pelo jornal ou ler a fonte que preferir.

Estas discussões não cabem neste texto, mas servem para ilustrar o tamanho do problema que os jornais enfrentam, que diz respeito muito mais ao modelo de negócio do que ao direito autoral em si.

Conteúdo livro na internet e o problema da monetização

Nos anos 90, sem referência alguma de modelo de negócio e sem saber quais caminhos iriam dar certo, se popularizou na internet a noção de que o modelo publicitário tradicional (anúncios junto ao conteúdo) um dia pagaria a conta da distribuição livre do conteúdo proprietário. Em outras palavras, que a propaganda pagaria os custos do jornalismo da grande imprensa na internet também.

O próprio conceito da distribuição livre de conteúdo é uma noção própria da internet, que levou ao surgimento de iniciativas como o Creative Commons e de movimentos como o Copyleft. Anos depois, com a explosão dos blogs, vieram as discussões sobre o papel do jornalismo e debates sérios sobre o papel dos blogs e do jornalismo no acesso a informação.

No pós-bolha, quando vários modelos de negócio começaram a amadurecer e surgiram alternativas de monetização do conteúdo, a crença geral passou a ser de que era uma questão de tempo para que o conteúdo gerado principalmente pela imprensa tradicional seria lucrativo.

Várias soluções foram apontadas como tendências ou mesmo possibilidades para o futuro, entre elas os Micropagamentos, solução usada por exemplo no iTunes, serviço de venda avulsa de músicas operado pela Apple. Nenhuma delas se mostrou viável até o momento para resolver o buraco da remuneração do conteúdo.

Só que neste meio tempo, a internet evoluiu e as pessoas passaram a poder escolher novas fontes de informação que não existiam antes. Para que ler o caderno de informática quando se tem bons sites sobre o assunto e bons blogs? Para que se limitar ao caderno de automóveis e seus classificados quando se tem milhares de sites sobre carros e sites especializados em anúncios com fotos, descritivos detalhados e comparação de preços. Enquanto o mundo mudava, o jornal impresso se agarrava ao modelo de anúncios de 3 linhas e conteúdos que já não eram mais exclusivos, ainda que conservem leitores até hoje.

Existe mercado para ambos, tanto para os cadernos de informática e automóveis quanto para os sites e blogs especializados, mas a monetização persiste como um problema a ser superado.

Direito Autoral

O argumento fundamental no qual se baseia a Declaração de Hamburgo é válido e lícito. O direito autoral é uma questão central da sociedade contemporânea e quem produz alguma coisa de valor deve ter o direito de decidir se deseja distribuir a criação livremente ou cobrar por ela, salvo exceções (novamente, exceções cujo debate não cabe aqui).

Esta é a questão que habita em torno do Creative Commons, uma flexibilização do direito autoral que possibilite que, caso o criador tenha direito exclusivo sobre uma obra e deseje compartilhar este direito com o mundo, possa fazê-lo de forma legalizada e organizada.

Por outro lado, há quem prefira cobrar pelo conteúdo que produz, seja pela qualidade, pela exclusividade, pela credibilidade ou seja lá pelo que for. Não são poucos os modelos de negócio online baseados em assinatura de serviços online. A versão gratuita permite acesso ao básico e a versão completa é paga.

Sob este ponto de vista, é facultativo que aqueles jornais que decidirem, cobrem por seu conteúdo. Apesar de estarmos acostumados a ter acesso ao conteúdo em geral de forma gratuita, acredito que este modelo sofrerá mudanças com o passar dos anos. Assim como novas fontes de conteúdo gratuito devem surgir, alguns conteúdos de qualidade poderão optar pelo caminho da assinatura, com diferentes graus de sucesso.

Assim como alguns decidirão cobrar, outros apostarão ainda mais pesado na gratuidade. Chris Anderson, o popular autor de “A Cauda Longa”, aposta em seu novo livro “Free” que este será o modelo reinante no futuro. Este mesmo livro, “Free”, pode ser lido gratuitamente num PDF não baixável online ou comprado em formato de livro impresso em papel. É um modelo que protege o Direito Autoral, mas compartilha uma determinada opção de formato da obra em formato livre. Já “Onipresente”, de Ricardo Cavallini, foi lançado totalmente livre em português, com 2 opções de PDF: baixa ou alta resolução, além da versão em livro impresso em papel, que é paga. Nos 2 exemplos, a escolha de dar ao leitor uma opção gratuita da obra partiu dos autores, que escolheram distribuir gratuitamente suas obras.

Quando o caso é do autor (ou proprietário do Direito Autoral, no caso dos jornais) escolher proteger seu conteúdo e cobrar pelo acesso, esta opção ainda gera muita controvérsia e críticas ao modelo escolhido. As críticas incluem questões ideológicas, mercadológicas e éticas, como no Manifesto Internet, escrito por 15 jornalistas e blogueiros alemães em resposta à Declaração de Hamburgo.

Em 2007, o New York Times abriu o acesso ao seu conteúdo online para não assinantes, sinalizando que esta tendência seria um caminho sem volta, até que Rupert Murdoch (proprietário da News Corp., controladora do New York Times, do Wall Street Journal, da rede de televisão Fox e do tablóide britânico The Sun) decidiu voltar sua atenção aos agregadores de conteúdo, especialmente o Google, através do Google News.

Alvo errado

O problema está no alvo. A Declaração de Hamburgo elege um alvo fácil, um bode expiatório para um problema que ainda não sabe como resolver. Se os agregadores de notícias fossem os grandes responsáveis pela queda de circulação e receitas no negócio dos jornais, imediatamente a má administração, o comodismo, o tradicionalismo editorial e outros problemas estariam resolvidos.

A Associated Press afirmou que moveria uma ação junto com alguns jornais impressos contra sites que usassem seu conteúdo de forma inapropriada. Em resposta, o CEO do Google, Eric Schmidt, escreveu um editorial no Wall Street Journal (jornal de propriedade de Rupert Murdoch) afirmando que tem ciência do problema no negócio dos jornais, mas que o Google não é o responsável pelo problema.

Schmidt comentou dados de um post no blog de Políticas Públicas do Google em resposta à Associated Press afirmando que os sites do Google enviam mais de um bilhão de leitores por mês para sites de jornais, e que cabe a eles monetizar este conteúdo.

Agora, o serviço Google News permitirá outra funcionalidade: os editores dos sites poderão escolher quantas páginas gratuitas os leitores poderão acessar por dia. A partir daí, o conteúdo será pago. Desta forma, o Google lava as mãos e tenta se retirar do centro da discussão.

Uma matéria do O Estado de São Paulo destacou uma frase do diretor-executivo da ANJ (Associação Nacional de Jornais), Ricardo Pedreira: “Em relação ao Google, o jornal que quiser pode pedir que tenha seu conteúdo retirado”.

O fato é que esta possibilidade já existia antes da Declaração de Hamburgo. Todo este cenário que se desenvolveu nos últimos meses mostra que estamos longe de uma compreensão mais aprofundada da Economia da Atenção e só vem provar que os negócios estão sendo afetados pelas mudanças no mundo mais rapidamente do que conseguem reagir a estas mudanças.

Tiago Dória comenta em seu blog: “Mesmo num blog gratuito, o leitor paga de forma não monetária ao ceder tempo e atenção para lê-lo. Coisas até hoje escassas e que estão se tornando quase moedas.”

Este deveria ser o ponto de atenção na Declaração de Hamburgo: o que os noticiários impressos estão fazendo para conquistar o tempo e a atenção de seus leitores? O dinheiro será conseqüência. Proteger os Direitos Autorais é uma medida que pode ter duas conseqüências bem distintas: demonstrar que de fato as pessoas valorizam o jornalismo da forma como vem sendo feito nas últimas décadas e se dispõe a pagar por ele ou acelerar o processo de ruptura com a notícia impressa por uma grande massa de leitores que já vêem adotando novas fontes de informação.

Aderir à Declaração de Hamburgo é só mais uma demonstração de que existe uma miopia no negócio da notícia impressa. Ao mesmo tempo em que tenta evoluir e se adaptar, não vê os novos comportamentos como oportunidades, mas como ameaças. Foca em prolongar o status quo ao invés de buscar soluções que perpetuem o bom jornalismo.

Mesmo quando há operações online bem estruturas, como é o caso de alguns portais de jornais brasileiros, ainda faltam estratégias para lidar com o jornalismo na internet de forma a atender os melhores interesses dos leitores sem ferir os interesses comerciais do proprietário do jornal.

E neste problema a Declaração de Hamburgo nem tocou.

(texto publicado originalmente no WebInsider)

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LINKS RECOMENDADOS:

Leia a Declaração de Hamburgo na íntegra:

http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,grupo-estado-apoia-acao-por-propriedade-intelectual-na-internet,463696,0.htm

Manifesto Internet, contra-ataque à Declaração de Hamburgo:

http://manifesto-internet.org/

Tiago Dória comenta a Declaração de Hamburgo:

http://www.tiagodoria.ig.com.br/2009/11/10/minha-opiniao-sobre-a-declaracao-de-hamburgo/

Paulo Querido comenta e alfineta a Declaração de Hamburgo:

http://pauloquerido.pt/media/declaracao-de-hamburgo-o-beco-sem-saida/

Comentários de Reinaldo Azevedo em seu blog na Veja sobre a Declaração de Hamburgo:

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/este-blog-anuncia-sua-adesao-a-carta-de-hamburgo-ou-a-democracia-tem-um-custo-se-voce-nao-que-ficar-na-mao-dos-vigaristas/

“Notícia” do O Estado de São Paulo sobre a Declaração de Hamburgo:

http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,anj-vai-estimular-jornais-a-aderirem-a-declaracao-de-hamburgo,464186,0.htm

Steven Johnson, um dos pioneiros da internet, e Paul Starr, Prêmio Pulitzer e professor de sociologia em Princeton, travam um debate acirrado sobre o futuro do jornalismo e o acesso à informação:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u551660.shtml

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SOBRE O AUTOR

Rafael Rez

Autor do livro “Marketing de Conteúdo: A Moeda do Século XXI”, publicado pela DVS Editora. Possui MBA em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2013. Fundador da consultoria de marketing digital Web Estratégica, já atendeu mais de 1.000 clientes em 20 anos de carreira. Co-fundador da startup GoMarketing.cloud. Fundou seu primeiro negócio em 2002, de onde saiu no final de 2010. Foi sócio de outros negócios desde então, mantendo sempre como atividade principal a direção geral da Web Estratégica. Além de Empreendedor e Consultor, é Professor em diversas instituições: HSM Educação, ILADEC, Cambury, ESAMC,ALFA, ESPM, INSPER. Em 2016 fundou a Nova Escola de Marketing.

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